Critérios para se escolher um lugar no ônibus

Este post não tem por objetivo complementar o seleto rol de princípios que regem o funcionamento orgânico e social de uma viagem de ônibus.  O comportamento dos atores de uma viagem de ônibus (os passageiros, o motorista, o trocador e os coadjuvantes externos à cena principal) não mudará uma vírgula em virtude da adoção ou não dos critérios que serão tratados a seguir para escolher um lugar no coletivo.  Também não trata este post de verdades absolutas, axiomas nem normas aplicáveis a toda e qualquer viagem de ônibus realizada no município do Rio de Janeiro.  Este post tem, contudo, um caráter educativo sim – da mesma forma que aquela série famosa.  Seu principal objetivo é fornecer dicas para o passageiro extrair o máximo de conforto e tranquilidade (e, quem sabe, até algumas histórias para contar) que uma viagem de ônibus no Rio de Janeiro pode fornecer.

Para começar, é importante localizar o ambiente para o qual se destinam essas dicas.  Imaginem os coletivos do Rio de Janeiro: ônibus grandes, com cerca de 45 assentos, motorista, trocador sentado na parte da frente do ônibus (do lado oposto ao do motorista, mas próximo dele).  Entrada pela porta da frente, roleta também na parte dianteira do ônibus, em frente ao trocador, e saída pela porta traseira (esteja ela no meio ou no fim do coletivo).

E vale também fazer um aviso aos palpiteiros de plantão: essas dicas não garantem que você vá pegar o melhor lugar do ônibus – até porque ele nem sempre estará disponível.  O que se precisa entender é que são apenas balisadores para tentar evitar furadas.  Muitas vezes, a conjunção dos fatores envolvidos na escolha direcionarão a busca por um dentre os lugares disponíveis para a aplicação de determinados critérios em detrimento de outros.  Tudo depende do cenário (disponibilidades, tempo de duração da viagem, temperatura externa, se o ônibus tem ou não ar condicionado, etc.) e da pessoa que escolhe.  Portanto, apreender as lições e colocá-las em prática (verificando e corrigindo erros com o passar do tempo, num processo contínuo de aprendizagem) é fundamental!

Agora sim, vamos às dicas:

1. Mapeie o coletivo: mapear o ônibus é fundamental.  Quando o ônibus para depois do ponto e você tem que correr atrás dele para alcançá-lo e, com sorte, conseguir embarcar, o mapeamento começa do lado de fora.  Quando não, ele se realiza na roleta.  Demore um pouquinho (três a cinco segundos são suficientes) para passar na roleta, enrole-se com o pagamento, esqueça onde guardou o vale-transpobre, invente algo para ter esses segundos preciosos e olhe para o fundo do ônibus.  Procure os lugares vagos e observe as pessoas que estão sentadas no coletivo.  Trace um plano estratégico e, só então, cruze a roleta.  O mapeamento inicial é tão importante que, dependendo do seu resultado, o aconselhável pode ser nem passar na roleta (invente uma desculpa esfarrapada, como “peguei o ônibus errado” ou  “roubaram minha bolsa” e desça imediatamente pena porta dianteira mesmo) ou descer imediatamente após cruzá-la.  É o caso, particularmente, de você mapear potenciais meliantes sentados no último banco do ônibus ou em pé junto à porta de desembarque.

2. Os assentos não são todos iguais: pressupondo a disponibilidade para a escolha, evite sempre os assentos preferenciais.  Aliás, em determinadas viagens, se apenas esses assentos estiverem disponíveis, melhor nem sentar e deixar que os velhos que subam no coletivo depois de você se engalfinhem para disputá-los.  Saiba que o último banco, com cinco lugares, no final do coletivo, é o maior expoente do princípio da liquidificadoriedade, o que se explica por uma simples regra de física newtoniana: o princípio da alavanca.  Como nos coletivos a roda traseira é bastante deslocada para a frente, para suportar a maior parte do peso do ônibus, a tendência é que os movimentos longitudinais sejam ainda maiores nos lugares situados após a roda – uma verdadeira alavanca cujo eixo é a roda dianteira do ônibus.  Como se não bastasse essa característica do último banco, ele é, hoje em dia, o único que possui o “assento Deus me chama” – aquele que fica de frente para o corredor central do ônibus, para onde o passageiro terá seu corpo inexorável e incontrolavelmente projetado em caso de prováveis freadas bruscas ou possíveis acidentes durante a viagem.  Em coletivos antigos, com a entrada pela porta traseira e saída pela porta dianteira, aquele primeiro assento do lado oposto ao do motorista também levava esse apelido (se bem que mesmo alguns mais novos ainda possuem esse famigerado assento, sempre preferencial).  Nele normalmente se sentam aqueles que pensam serem co-pilotos do coletivo, ávidos por auxiliarem o motorista.  Se você acha que ainda não está na sua hora de ser chamado por Deus nem de ser sacudido, melhor escolher outro assento.  Quando a porta do coletivo for no final, prefira sentar-se no meio do ônibus; quando a porta for no meio, prefira sentar-se no final.  Evite sentar-se muito próximo da dianteira do ônibus, para não ser incomodado pelas aglomerações causadas pelo princípio da imobilidade conveniente.  A proximidade excessiva com a porta de desembarque, especialmente em veículos cuja porta de desembarque fica no meio do ônibus, e não na traseira, pode também gerar incômodos causados pela aglomeração de pessoas esperando para saltar.  Note que a distribuição das janelas nos ônibus não é democrática.  Alguns bancos têm uma, outros têm duas, outros não têm nenhuma janela para ser aberta (usando por critério não a vista para a rua, mas o batente da janela).  Domine a janela: prefira os bancos com mais janelas  – e note que eles sempre serão ocupados antes dos demais.  Bancos altos são melhores que bancos baixos, porque diminuem as chances de você legar uma bolsada/mochilada na cara (isso quando não é a genitália alheia que encosta na sua orelha, forçada ou não por alguém que está passando no corredor atrás da pessoa em pé ao seu lado).  Além disso, eles sempre têm braços, o que limita possíveis invasões do seu espaço por quem está em pé (invasões genitais, frequentemente), e permitem o melhor monitoramento das ações que se passam no interior do ônibus (nunca se sabe o que pode acontecer ali dentro, portanto é melhor estar atento e numa posição que favoreça a observação).  Tenha consciência da hora do dia e do sentido geográfico da sua viagem, pois um dos lados do coletivo será mais generosamente banhado pelo sol do que o outro.  Em dias de calor extremo – muito comuns no Rio de Janeiro, escolher o lado menos favorecido pelo sol pode significar um diferencial de conforto elevadíssimo na sua viagem.

3. O óbvio é o óbvio, mas…: bancos de dois lugares completamente vazios são tentadores.  A maioria das pessoas se sente propensa a ocupá-los sem analisar outros critérios.  De fato, eles são mesmo o filé mignon do ônibus, principalmente naquelas linhas e naqueles horários de pouca ocupação dos coletivos, onde há grande probabilidade de se executar a viagem inteira sem que ninguém sente ao seu lado.  Esse paradigma, contudo é irreal (porque raro) e ilusório (porque, mesmo quando existente, tende a não se manter até o fim da viagem).  Por isso, observe se não vale mais a pena tentar sentar ao lado de alguém que você já examinou do que assumir o risco de ter alguém que você não escolheu sentado ao seu lado.  Em outras palavras, é melhor escolher do que ser escolhido.  Isso não garante o sossego da sua viagem até o seu fim, porque a pessoa que você escolheu para dividir a viagem pode se levantar e ir embora, mas até nisso um correto e acurado mapeamento pode ajudar.  Em ônibus muito vazios, porém, sente-se sempre sozinho.  Você pode gerar desconfianças nos outros passageiros, principalmente no seu colega de banco, por fazer questão de se sentar ao lado dele ao invés de se sentar sozinho num banco.

4. Janela ou corredor?: em bancos completamente vazios, corredor, sempre!  Nunca se sabe quem vai querer sentar do seu lado, se um assaltante, um velho, uma gorda, um garoto integrante de uma trupe que entrou junta no ônibus saindo da escola, um vendedor de balas, uma linda mulher cheirosa e sorridente ou um armário recém-saído da labuta sem tomar banho.  Já que você vai ser escolhido por alguém para ser parceiro de viagem, retenha, pelo menos, o poder da escolha do lugar.  O domínio do banco pertence a quem está sentado nele: quando a pessoa chegar e pedir para sentar na janela, você, que já está sentado, pode se mover para a janela e oferecer-lhe o corredor.  Para quem está em pé no ônibus, sentar é luxo e, portanto, quem está em pé não tem direito de escolher o lugar que vai sentar.

5. Do lado de quem?: conhecer o itinerário do ônibus é importante nessas horas, pois não se deve escolher pessoas com uniformes de escolas e empresas situadas muito antes do seu destino final, nem de pessoas que estejam com a mochila/bolsa/sacola na mão, olhando atentamente a janela, como que prestando atenção para se levantar e sair (acontece com frequência).  Isso reduz sua capacidade de escolha.  Prefira sempre dividir o banco com uma mulher, mesmo que você seja mulher.  Homens são, via de regra, mais espaçosos que mulheres (involuntária ou voluntariamente), mais fortes e largos e, por isso, podem espremer você contra a janela ou forçá-lo a sentar-se com apenas metade da bunda no banco.  Obviamente, evite também sentar-se ao lado de gordos – prefira pessoas magras (quanto mais magro, melhor).  Observe a limpeza e o asseio da pessoa antes de escolher o seu vizinho de banco: pessoas com cabelos molhados (especialmente mulheres) tendem a estar limpas e cheirosas, proporcionando uma viagem mais agradável aos seus vizinhos do que pessoas suadas e com roupas maltrapilhas.  Entre velhos e crianças, prefira os velhos.  Crianças são normalmente muito inquietas.

6. Em pé vale: e como vale.  Com a recente tentativa de tornar os ônibus acessíveis (“tentativa” porque eu duvido que um daqueles mecanismos de acessibilidade efetivamente funcione), o melhor lugar para ficar em pé num ônibus passou a ser naquele curralzinho destinado aos cadeirantes.  Longe da confusão, do roça-roça natural causado pelo princípio da vaselineidade aquele espaço é o ideal para curtir uma viagem em pé, bem apoiado, num coletivo carioca.  Na falta desse lugar, o jeito é ficar no corredor ou na escada de desembarque.  Na escada, o inconveniente ocorre apenas quando o ônibus está muito cheio, e é necessário sair do coletivo toda vez que alguém quer desembarcar.  No corredor, deve-se escolher um lugar em frente a um banco e firmar bem as mãos nos apoios verticais, um de cada lado – e não sair dali em nenhuma hipótese.  Tente fugir das pessoas aglomeradas próximas à roleta em decorrêcia do princípio da imobilidade conveniente.  Vá para o fundo do ônibus, especialmente se a porta de desembarque for no meio do coletivo, e não na sua traseira.  Assim você eliminará uma parte do roça-roça.  Procure ficar de pé em frente de alguém que dê pinta de que vai levantar no meio da viagem.  Mais uma vez, uniformes de escolas e empresas podem dar dicas de quando uma determinada pessoa vai levantar para saltar do ônibus.  Observe os detalhes!  E, em caso de média ocupação do coletivo, procure não deixar ninguém entre você e os fundos do coletivo: você, assim, aumenta suas chances de se sentar, já que você será a pessoa mais próxima do maior número de lugares que podem vagar durante a viagem.  Por exemplo: se há três pessoas em pé no ônibus, todas próximas à roleta, e você fica na última posição (aproximadamente no meio do coletivo), você terá preferência para ocupar o lugar de qualquer pessoa que se levantar entre o você e o banco traseiro (o que pode representar algo em torno de 15 a 20 lugares potenciais).

12 Comments

  1. Estamos presenciando o limiar de mais uma ciência: a onibusgrafia, com seus ramos físico e político! Este post é outra antologia – e o mais legal é ver que eu fazia muitas dessas técnicas instintivamente!

    Desculpe corrigi-lo. O nome da ciência é busologia. E tenho dito.

  2. G-E-N-I-A-L!

    Esse manual será de grande valia para o dia-a-dia dos passageiros.

    Ouso a dar a minha pequena contribuição: se quero evitar inconvenientes tais como trocador e idosos puxando papo, ou ser inebriado com aquele cheiro doce que sai do gel para alisar e pentear cabelos, costumo escolher lugares não próximos à roleta (proximidade com o trocador e onde costumam se sentar os idosos logo que passam a roleta), e que tenham necessariamente uma janela alinhada com o meu braço, de forma com que eu possa apoiá-lo e ter acesso livre e imediato ao ar externo, procurando assim garantir que os odores não fiquem concentrados naquele ambiente de pouca circulação de ar.

    Mas essa sua dica está no post…

  3. Poruqe ninguem senta do meu lado no onibus ???

    Ou você é gordo, ou você fede, ou você se encaixa em uma das outras hipóteses mencionadas no texto.

    1. Ou tem cara de bandido, maníaco, psicopata ou afins. Desculpa, mas tem gente com cara de mal encarado nessa vida que prefiro nem me arriscar a chegar perto num ônibus.

      São ótimas opções para se cogitar também.

  4. Muito interessante o artigo, bem escrito.
    Pelo princípio físico mencionado, o meio do ônibus torna-se o mais confortável (com o desembarque na traseira) OU, na frente dele, pois a longo prazo, a tendência é que ele fique com a traseira arriada (pois quando lota, essa parte é a mais procurada, principalmente na porta). Neste caso, a suspensão frontal está menos desgastada, absorvendo melhor os buracos.
    Todavia, em um ônibus novo refrigerado, somado a um asfalto decente, esses critérios não são relevantes. A última fileira é a mais confortável nesse contexto, visto que não há o roçar dos corredores, além de que o ar refrigerado tende a se deslocar para a traseira nos momentos de aceleração.

    Cadete Aviador Gabriel Miranda, usuário rotineiro do 908, 628, 497, 457 e 36 Penha Expresso.

    Realmente, ponderações sensatas e fruto de arguta observação.

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